No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.
No primeiro episódio da quinta temporada, Sara conversa com os arquitetos do fala atelier sobre o projeto da Casa Garagem. Ouça a conversa e leia parte da entrevista a seguir.
Sara Nunes: Como estava a dizer-te em off, conheci a Casa Garagem – sobre a qual vamos falar hoje – no evento de arquitectura que é daqueles que eu mais gosto: o Open House. É aquele que eu acho que, realmente, leva a arquitectura às pessoas ou abre as portas da arquitectura às pessoas. Eu, inclusivamente, visitei esta casa no contexto de uma visita guiada. [Nessa altura], estavas a receber as pessoas na casa e a explicar as decisões que vocês foram tomando e as histórias. E também estavam os donos da casa que iam contando e acrescentando histórias àquilo que tu ias dizendo. Estavam bastante participativos. Lembro-me que fiquei impressionada [por verificar] que um espaço de garagem se pode transformar num espaço doméstico e confortável para habitar. Sei que este projecto é uma resposta aos preços altos que se praticam em Lisboa, no centro da cidade, porque os clientes estavam à procura de uma casa. Eu soube de uma história que, a dada altura, um dos agentes imobiliários lhes disse que eles tinham tão pouco dinheiro que se calhar o melhor era eles comprarem a garagem. E eu gostava que tu me contasses essa história anterior [a esse momento] de vocês começarem a projectar o espaço desta casa.
Filipe Magalhães: A história começa com duas pessoas que são dos melhores clientes que tivemos. Tivemos muita sorte nessa altura – o Tomas e a Lia – que, não sendo portugueses, já moravam em Portugal há alguns anos e precisavam, efectivamente, de saltar da elevada renda para um empréstimo para comprar uma casa, mas não encontravam nada. E estamos a falar de 2014, ou de 2015, portanto ainda não estamos a falar do momento actual. Estamos a falar um bocadinho antes.
SN: Entretanto já quase passaram dez anos, não é?
FM: Entretanto os preços que, na altura, eram caríssimos, hoje seriam considerados achados. É outro universo, mas na altura eles encontraram um agente imobiliário que depois de uma, três, quatro, cinco visitas... lhes disse: “Pronto. Ok. Nós não vamos encontrar o que vocês estão à procura. Por essa ordem de preços, comprem um armazém, uma garagem, ou um arrumo em qualquer lado.” E eles perguntaram: “Ok. O que é que vocês têm para mostrar nessa tipologia?” Nas semanas que se seguiram visitaram algumas garagens. Quando visitaram aquela garagem, especificamente, gostaram bastante. Primeiro porque ela custava 30.000 euros. Quer dizer, não custava... Custava menos do que um carro quase... Tinha 200 m2, não tinha janelas – o que é um tema profundamente polémico –, mas tinha umas clarabóias maravilhosas que davam imensa luz natural. Só tinha um pilar gigantesco fortíssimo no centro do espaço e, muito antes de falarem connosco, eles sentiram que estava ali o potencial do que queriam.
Quando nos contactaram e perguntaram se estaríamos interessados para transformar o espaço, para nós, foi óbvio que sim. Estávamos no início com o nosso escritório. Tínhamos pouca ou nenhuma encomenda. A encomenda que tínhamos era uma encomenda mais focada na reabilitação de apartamentos para alojamentos locais e Airbnb’s que, com todo o respeito, são encomendas que não interessam assim muito, não é? Mas era o que tínhamos em cima da mesa e aquilo, para nós, era a encomenda de uma vida.
SN: Ou seja, a possibilidade de estarem a desenhar mesmo o espaço para quem vai habitar, não é?
FM: Sim e tipologicamente ser outra coisa qualquer. Deixar de ser o tema do T0, [deixando de pensar]: “Como é que se vai resolver o problema do exaustor?”; ou “Onde é que fica a cama?”, que acabam por ser projectos mais de mobiliário do que necessariamente de arquitectura... E ali havia um espaço que tinha características muito próprias porque era um espaço que estava preparado para receber carros, tinha sido usado como armazém, durante algumas décadas, mas não estava preparado para ser uma casa. E aquilo que nos era pedido era isso. Mais do que uma questão formal, era uma questão tipológica: “Como é que nós transformamos uma coisa que não é, naquilo que pretende ser?”
E o espaço era tão forte e tão rico que, depois de muitas voltas no projecto, o espaço acabou por ficar como estava quase. Tirando uma casa de banho que foi acrescentada e que rematava um canto por preencher, o espaço ficou como estava porque tipologicamente ele já era uma casa.
SN: Antes de começarem o projecto quais foram as perguntas – que tu consideras fundamentais ter feito aos clientes – que acabaram por dar as respostas para que a casa fosse uma extensão deles?
FM: A primeira pergunta que lhes fizemos – e é uma pergunta frequente porque depois dessa fizemos muitas garagens e lojas de rés-do-chão transformadas em habitação – era se eles percebiam que aquela casa não iria ser a casa que estavam à procura porque não é possível projectar num espaço, com aquelas características, as ideias pré-definidas que nós temos para o que é [considerado] uma casa normal: o hall de entrada para a esquerda, a cozinha à frente, a sala... depois uma portinha à direita para o corredor dos quartos, a casa de banho, ao fundo, e os quartos virados para trás. Os quartos a nascente, a sala a poente... Quer dizer, nada disto se coloca ali. E uma das dúvidas que tínhamos com eles – porque eles não tinham filhos e não falavam sobre isso – era se seria preciso mais um quarto e seria preciso um convidado passar por lá... Ou seja, havia uma questão tipológica mais no sentido de ser preciso perceber quantas zonas privadas deveríamos ter e com que grau de privacidade elas deveriam ser definidas, mas havia uma noção muito clara da nossa parte que aconteça o que acontecer – até poderiam pedir-nos dez quartos – aquilo não seria uma casa tradicional. Não é possível. Não estão reunidas as condições base para isso. E eles, na altura, até com alguma displicência disseram: “Não faz diferença.”
SN: Portanto, também tiveram essa abertura.
FM: Sim porque eles tinham... É assim... Quem não tem dinheiro, não tem vícios. E a verdade é que eles tinham 30.000 euros para comprar o imóvel. Ah, peço desculpa. Enganei-me. Eram 70.000 euros que custava o imóvel. 30.000 euros foi o custo da obra. Peço desculpa.
SN: Ok.
FM: Eles tinham muito pouco dinheiro. Com 100.000 euros, com 200 m2, no centro de Lisboa para ficar com casa pronta, mesmo em 2014 ou 2015, era impensável. Não era realista, portanto eles também perceberam que, se nós tirássemos todos os “se’s”, [teriam de] aceitar o que viesse daí. E o espaço resultou muito bem também, precisamente, por causa disso. Eu acho que, para fazer um bom projecto, é preciso uma série de factores. É preciso um bom cliente, é preciso um orçamento adequado à ideia que se pretende e aqui o que acabou por acontecer foi o contrário: a ideia adequou-se ao orçamento possível e foi a melhor coisa. Se nós tivéssemos o dobro ou o triplo do orçamento, eu acho que não teríamos um melhor projecto. Bem pelo contrário. Até o tínhamos piorado.
Ouça a entrevista completa aqui e reveja, também, a quarta temporada do podcast No País dos Arquitectos:
- Tomás Salgado do ateliê Risco
- Filipa Guerreiro e Tiago Correia
- Teresa Nunes da Ponte
- Pedro Campos Costa
- José Carlos Nunes de Oliveira
- Pedro Bandeira
- Correia/Ragazzi Arquitectos
- Samuel Gonçalves, do atelier SUMMARY
- Diogo Brito do OODA
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e Melanie Alves e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.